
Será que vocês já ouviram falar do jogo do contente? Quando eu tinha 13 anos, “caiu em minhas mãos”, uma obra clássica da escritora americana Eleanor H. Porter, intitulada Poliana. Publicado pela primeira vez em 1913, o livro narra a história da protagonista que consegue ver o lado bom em tudo que acontece… até que um obstáculo desafie seu Jogo do Contente que foi inventado por seu falecido pai, para que ela encontrasse diariamente motivos para sorrir. Com esse pensamento, ela enfrenta as dificuldades da vida e provoca os adultos a seguir pelo mesmo caminho, sem nutrir mágoas ou tristezas profundas.
Não sei dizer se Dona Akiko, minha mãe, chegou a ler esse livro mas depois que terminei a leitura dessa obra literária, cuja mensagem nos faz refletir sobre a importância de ser otimista e ver sempre o lado positivo de todas as situações, com exceção do funeral, já que “não há nada em um funeral que possa deixar alguém contente” segundo Poliana, o que mais me impressionou foi perceber como minha mãe jogava tão bem esse jogo no seu dia a dia.
Como comentei anteriormente, sou descendente de japoneses e reza os antigos costumes de meus ancestrais, o sistema patriarcal em que cada membro tem seu lugar definido na estrutura e na organização doméstica, assim como o compromisso com quem o comanda. Na hierarquia, cuja autonomia máxima era do pai, o primogênito (sexo masculino) tinha a responsabilidade de perpetuar o legado cultural e social da família, cabendo a sucessão do honrado nome da família. Digamos que, de certa forma, não deixava de ser um resquício de feudalismo que a tradição japonesa respeitava com muito orgulho.
Em outras palavras, meus avós imigraram para o Brasil e o meu pai, por ser filho único, era também o primogênito da família. Fortemente enraizado em seus costumes e tradições, meu avô paterno era o patriarca da família, de modo que quando meus pais casaram, minha mãe foi morar com meus avós, assumindo seus deveres previamente estabelecidos. Assim, eu e meus irmãos nascemos e passamos a nossa infância e adolescência convivendo não só com meus pais, mas principalmente com meus avós que estavam sempre presentes, transmitindo profundas lições de vida para todos nós.
Onde entra a Dona Akiko nessa história toda? Meu avô, apesar de ser extremamente generoso, era o “senhor feudal do nosso clã” e, além de autoritário, era implacável em suas decisões, ou seja, quando ele falava, todos (meus pais e minha tia Zélia que é a única irmã de meu pai e era uma jovem adolescente quando eu nasci) tinham que “baixar as orelhas”, mesmo não concordando com as suas ações.
Meu pai teve muitas dificuldades em “digerir” essas imposições, mas como era obrigação do primogênito zelar pelos familiares e respeitar os pais, mesmo contrariado acatava as ordens do meu avô. Minha mãe, por sua vez, não esquentava a cabeça e levava a vida numa boa, mesmo com 5 filhos, sendo corresponsável pelo preparo das refeições da família e ainda por cima, frequentando um curso superior por determinação do meu avô que considerava importante ela ser “letrada” para que tivesse o mesmo nível de conhecimento de meu pai, que era muito estudioso. Naquela época, mais de 50 anos atrás, pouquíssimas mulheres tinham acesso a um curso superior e, se não me engano, minha mãe foi uma das primeiras descendentes de japoneses na nossa cidade a concluir uma “faculdade” e se tornar, posteriormente, professora de geografia no ensino fundamental.
Assim, minha mãe foi se dedicando à sua atarefada rotina, colocando em prática o seu jogo do contente, sem nutrir mágoas ou tristezas diante da autoridade do patriarca da família. Se por um lado meu avô era muito rígido, ela teve uma sorte incrível pois minha avó era muito, mas muito amável e compreensiva (acho que também conhecia o jogo do contente) e posso falar de “boca cheia” que nunca presenciei uma discussão entre essas duas mulheres que conviveram pacificamente por 45 anos.
Somente após a partida de meu pai, meu avô e de minha avó, há 17 anos, Dona Akiko conseguiu se sentir livre como um passarinho e decidiu viver para ela mesma. Até então, sempre com o seu joguinho do contente a postos, tinha dedicado toda a sua vida em prol do bem estar da família. Para se ter uma ideia de como ela levava esse jogo tão a sério, eu dificilmente a vi reclamar e na minha “aborrescência”, quando eu ficava revoltada contra tudo e todos e ela, na tentativa de me acalmar, me dizia que tínhamos que “dançar conforme a música”, tenho que confessar que ficava irritada com o seu comportamento que, na época, eu entendia como “conformismo” e não como “resiliência”.
Continuando… nesse período em que a minha mãe estava começando a sentir o gostinho da liberdade, teve que colocar novamente em prática seu velho jogo do contente para vencer uma dura batalha contra um câncer que veio incomodá-la. Após se libertar da doença, sentindo-se mais leve e solta, desta vez como uma borboleta que acaba de sair do casulo, resolveu seguir o conselho que Poliana dá para Tia Polly durante a reprimenda de um jogo do contente: “Respirar apenas não é viver!”.
Restabelecida após um período de debilitação, porém carregada de energia, coragem e entusiasmo, Dona Akiko decidiu não só respirar mas viver intensamente, participando de vários grupos sociais e religiosos e realizar o maior desejo de sua vida que era viajar e explorar, ao vivo e a cores, tudo que ensinara a seus alunos nas aulas de geografia. Totalmente descompromissada, resolveu se aventurar conhecendo vários lugares de norte a sul do Brasil e alguns países da Europa, além de visitar, eventualmente, a família de sua filha Célia, minha irmã, que mora no México e a família de seu irmão caçula Mário, que mora em Toronto, no Canadá.
Quando estava de malas prontas para passear no Japão, país que ela já tinha ido várias vezes, veio a pandemia e teve que cancelar a passagem pois a entrada de turistas não estava mais sendo permitida naquele país. Graças a Deus, tomando os devidos cuidados, não foi atacada pelo terrível vírus da COVID 19, mas no início do ano passado teve um súbito acidente vascular cerebral (AVC), ficando com os membros superiores e inferiores totalmente imobilizados. Felizmente, o cérebro e os órgãos sensoriais não foram afetados e, mais uma vez, mentalizando o seu joguinho do contente, fazendo fisioterapia e acupuntura, está cada dia melhor. Apesar do seu braço esquerdo continuar imobilizado, consegue se locomover e já está fazendo a maior festa quando a turminha das cartas de baralho vai semanalmente visitá-la.
Hoje, dia 3 de novembro, Dona Akiko está completando 82 anos e agora que não está mais em condições de viajar mundo afora vai, enfim, curtir a partir deste mês, uma casa “novinha em folha” que foi construída especialmente para ela. Depois de passar mais de 60 anos na velha (mas bem conservada) casa onde morou desde que se casou, vai sentir, pela primeira vez, o gostinho de ter o seu lar, doce lar.
Desse modo, nesta data tão especial, desejo profundamente que a Poliana que existe dentro dela continue firme e forte pois, melhor que ninguém, ela sabe que viver é fazer aquilo que se gosta, é ter um bom dia, é ler bons livros, dar boas gargalhadas e se divertir jogando “buraco” com seus bons e velhos amigos. Ainda mais agora na sua recém construída casa própria!!!
E como nem todos os dias o sol brilha em nossas vidas, tenho certeza que vai “tirar de letra” qualquer obstáculo, pois não conheço quem jogue tão bem esse jogo do contente como ela joga. Razão pela qual digo constantemente para meus familiares que ela é o exemplo de uma pessoa que está sempre, mas sempre mesmo, de bem com a vida. Parabéns, Dona Akiko, por mais um “aninho” de vida e que o seu jogo do contente continue nos inspirando (filhos, netos e bisnetos), a encarar os desafios e extrair o que há de melhor no dia a dia.

Encerro este post com uma bela frase de Cora Coralina que, assim como minha mãe, era “expert” no jogo do contente: “Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou. Ensinou a amar a vida e não desistir da luta, recomeçar na derrota, renunciar a palavras e pensamentos negativos. Acreditar nos valores humanos e ser otimista.”
~ Bia ~