
Sendo hoje, 24 de abril, o Dia Nacional da Libras, na condição de professora de Libras, acho por bem esclarecer que, ao contrário do que muitos dizem (até mesmo porque eu já vi vários apresentadores famosos dos telejornais referir-se à Libras como linguagem de sinais), que a Libras – Língua Brasileira de Sinais, como o próprio nome diz, não é linguagem. É língua!!!
Para compreendermos melhor a diferença entre língua e linguagem que confunde mesmo a cabeça de muita gente, a linguagem é a capacidade de se comunicar através da linguagem oral, corporal e/ou visual, de forma a transmitir uma mensagem para outra pessoa. Temos também a linguagem digital que usa combinações numéricas para criar sites, jogos e aplicativos que permitem a comunicação via computadores, celulares e qualquer outro meio eletrônico. Por outro lado, a língua é um conjunto organizado de sons e/ou sinais que um determinado grupo usa para se comunicar, com um sistema que possui estrutura e regras próprias. Um bom exemplo é imaginarmos que estamos em um restaurante na França e não sabemos falar o idioma francês. Ao utilizarmos a linguagem corporal e/ou visual, conseguimos mostrar para o garçom o prato que desejamos pedir, apesar de não sermos capazes de fazer o pedido na língua dele e de não sabermos pronunciar o nome do prato. Será que deu para perceber a diferença entre língua e linguagem?
Agora que já sabemos que Libras é uma língua, vamos falar um pouquinho sobre esse idioma que é utilizado pela comunidade surda brasileira. Como nas diversas línguas naturais e humanas existentes, a Libras também é composta pelos níveis linguísticos: o fonológico, o morfológico, o sintático e o semântico. Ao contrário das línguas orais-auditivas que fazem o uso das palavras, nas línguas de sinais a comunicação está diretamente ligada a movimentos e expressões faciais, ou seja, a diferença está na modalidade de articulação, que no caso da Libras é a visual-espacial, não envolvendo apenas o conhecimento dos sinais, mas o domínio de sua gramática para combinar as frases, no sentido de estabelecer a comunicação de forma correta, evitando-se assim, o uso do “português sinalizado”. Muita gente pensa que a Libras é só um conjunto de sinais como simples gestos ou mímicas, mas ela vai muito além disso!!!
Para vocês terem uma ideia, os sinais surgem da combinação de configurações de mão, movimentos e de pontos de articulação – locais no espaço ou no corpo onde os sinais são feitos – e de expressões faciais e corporais que transmitem sentimentos, que compõem as unidades básicas dessa língua. Um ponto importante que devemos destacar é que cada palavra possui seu próprio sinal e somente quando não for possível identificá-lo como, por exemplo, nomes próprios, recorremos à datilologia, isto é, a soletração por meio do alfabeto em Libras. Deste modo, a língua de sinais se apresenta como um sistema de transmissão de ideias e fatos, possibilitando o desenvolvimento linguístico, social e intelectual, favorecendo o acesso à comunicação mais adequada aos surdos e, consequentemente, ao conhecimento cultural-científico, bem como a integração no grupo social ao qual pertence.
Posto isso, vou contar alguns fatos interessantes sobre a Libras. Para começar, vocês sabiam que ela não é uma língua universal? Isso mesmo! Assim como existem várias línguas faladas no mundo, existem mais de 200 línguas de sinais no mundo e cada uma tem suas próprias normas, havendo até mesmo alguns países, como o Canadá, que mais de uma língua de sinais é utilizada. Lá se usa a Língua de Sinais Americana (American Sign Language) e a Língua de Sinais de Quebec (Langue des signes québécoise) justamente pelo fato do país ter tanto o inglês quanto o francês como línguas oficiais. Da mesma forma, como o idioma português, espanhol, italiano e francês se originaram da evolução do latim, línguas de sinais também têm semelhanças umas com as outras e muitas vezes compartilham a mesma origem. A própria Libras tem, por motivos históricos, forte influência da língua de sinais francesa, quando foi criada em 1857.
Hoje em dia ela tem a sua própria identidade graças à luta sistemática e persistente da comunidade surda que fez com que a Língua Brasileira de Sinais fosse reconhecida como o meio legal de comunicação e expressão através da Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002, razão pela qual comemoramos nesta data, o Dia Nacional da Libras. Sem dúvida, foi uma grande vitória para a comunidade surda pois o decreto garante o direito à Libras como a língua das pessoas surdas no acesso à educação, à saúde, à cultura e ao trabalho. A Lei também serviu de alicerce para uma série de políticas públicas. A partir de então, somaram-se novas conquistas, sendo que em 2003 foi aprovada a Portaria nº 3.284, que dispõe sobre a acessibilidade dos surdos dentro das universidades brasileiras. No ano seguinte, em 2004, foi ratificado o Decreto nº 5.296, o qual estabeleceu mais prerrogativas legais de acessibilidade.
Todavia, apesar de reconhecida, a Libras só foi regulamentada em 22 de dezembro de 2005, por meio do Decreto nº 5.626, que incluiu a Libras como disciplina curricular obrigatória na formação de professores surdos, professores bilíngues, pedagogos e fonoaudiólogos. Assim, a primeira universidade a inserir o curso de graduação em Língua de Sinais Brasileira foi a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da qual, orgulhosamente, fui aluna da primeira turma. Em 2010 foi regulamentada a profissão de Tradutor/Intérprete de Libras através da Lei nº 12.319 de 1° de setembro de 2010, simbolizando mais uma grande conquista. Em 6 de julho de 2015, entrou em vigor a Lei nº 13.146, denominada Lei Brasileira da Inclusão de Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), incumbindo ao poder público, entre outras coisas, a oferta de educação bilíngue, uma vez que é dever do Poder Público garantir acesso e educação para surdos nas escolas regulares de ensino, garantindo seu aprendizado e progressão educacional. Mais recentemente, foi sancionada a Lei nº 14.191, em 2021, que insere a Educação Bilíngue de Surdos na Lei Brasileira de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, como uma modalidade de ensino independente, antes incluída como parte da educação especial.
Como podemos observar, foi somente a partir de 24 de abril de 2002, com a Lei nº 10.436, que a Libras projetou-se nacionalmente, passando a ocupar o status de língua e reconhecida pela linguística. Para que se possa compreender a importância da Libras no desenvolvimento cognitivo da criança surda, pesquisas desenvolvidas ao longo dos anos com filhos surdos de pais surdos vêm comprovando que a aquisição precoce da língua de sinais dentro do lar, contribui de maneira mais rápida e eficaz o aprendizado do português escrito como segunda língua, se comparado com crianças surdas de pais ouvintes que tiveram acesso tardio à língua de sinais. Apesar dos meus pais não serem surdos e só ter o acesso à Libras aos 8 anos, pelo fato de ter o mais alto grau da perda auditiva (profunda), foi somente após ter assimilado a língua de sinais como a minha língua natural, que passei a compreender melhor, não só o português, mas outros idiomas como inglês, espanhol e japonês.
Desse modo, tenho que corroborar com diversos estudos que demonstram que a língua de sinais apresenta uma organização neural semelhante à língua oral, ou seja, que ela se organiza no cérebro da mesma maneira que as línguas faladas, considerando-se que a forma de comunicação natural seja aquela em que a criança, surda ou ouvinte, se sinta mais confortável. Diante dessa premissa, a Libras vem sendo, dia após dia, direcionada como um caminho necessário para a efetiva mudança nas condições oferecidas pela escola no atendimento educacional de alunos surdos. Apesar de enfrentarmos controvérsias que perpassam a discussão nesta área, além de ambiguidades e indefinições nas propostas para o ensino do surdo, temos plena consciência que concretizá-las envolve desafios de como lidar com a inclusão da Libras nos âmbitos escolares.
No Dia da Libras, que acima de tudo “marca a luta pela busca do reconhecimento, pela aceitação e inclusão do direito de aprender e de ensinar, de ingresso no mercado de trabalho e de acesso ao direito humano à qualidade de vida da comunidade surda”, como tão bem enaltece a jornalista Maria Clara no seu artigo “Dia da Língua Brasileira de Sinais – Libras: A luta pela inclusão social“, é sim, um dia de comemoração, mas ela também expõe que é uma data de “reflexão sobre a necessidade de ampliar e fortalecer políticas públicas de formação de professores e de difusão e disseminação da Língua Brasileira de Sinais no PaÍs”, conforme afirma a professora Sinara Pollom Zardo, da Universidade de Brasília (UnB), destacando, inclusive, que “é preciso que o Estado assegure uma educação inclusiva, com oferta do ensino bilíngue executado por profissionais qualificados e concursados em todas as escolas da rede pública”.
Diante desta perspectiva, em que a Libras é fundamental à educação bilíngue em nosso país, sendo coincidentemente comemorado em Portugal, no dia anterior, 23 de abril, o Dia Nacional de Educação de Surdos, o diretor do Sindicato dos Professores no Distrito Federal (Sinpro-DF), Carlos Maciel, aponta que é preciso reforçar a defesa dos direitos das pessoas surdas às políticas públicas do Estado, à educação pública gratuita e de qualidade, por meio de uma educação livre de capacitismo e com mais inclusão e igualdade. Afinal, temos que convir que a Libras, que é língua e não é linguagem, enquanto fenômeno social, cultural e político da comunidade surda, veio para autenticar que nós, surdos, somos sujeitos de direitos, com diferenças culturais e que o primeiro artefato de manutenção desta diferença é, sem dúvida alguma, a Língua Brasileira de Sinais.
Encerro o post com um trecho do livro “O voo da gaivota”, da escritora Emmanuelle Laborit: “Recuso-me a ser considerada excepcional ou deficiente. Não sou. Sou surda. Para mim, a língua de sinais corresponde à minha voz, meus olhos são meus ouvidos. Sinceramente nada me falta. É a sociedade que me torna excepcional…”
Sem mais delongas… Viva o Dia Nacional da Libras!!!
~ Dani ~